04 março 2010

O que é Arte Espírita?

Tomo por empréstimo o título e algumas idéias do polêmico e desconhecido ensaio O que é arte?, de Léon Tolstoi, para propor uma reflexão sobre a não menos controversa e ignorada arte espírita. O ensaio é polêmico pela forma pouco convencional de tratar o tema, conservador em certos aspectos e demolidor em outros. Mas, numa sociedade alheia à prática de refletir e saturada por produtos ditos artísticos, pouquíssimas pessoas se sentem curiosas por um convite como o de Tolstoi, para debater a natureza da arte. Já a arte espírita é controversa pela variedade de pontos de vista defendidos por aqueles que a produzem. Eles dividem-se, grosso modo, entre a necessidade de fazer uma arte “direta”, difusora clara do espiritismo, e a preferência por levar “indiretamente” a mensagem espírita ao público. O problema é que, mesmo entre os espíritas, quase ninguém conhece essa arte.



E por que ela é ignorada? Por que, mesmo diante da missão auto-imposta por muitos desses artistas de usar a arte como meio de divulgação do espiritismo, a arte espírita permanece no anonimato? Existem notórias razões de natureza cultural, técnica e financeira para isso. Mas não vou me deter nelas. São questões que demandam mudanças de mentalidade em todo o movimento espírita. E acredito que este aqui seja o espaço ideal para tratar de aspectos mais essenciais do problema. Deficiências cuja superação cabe, antes de tudo, ao próprio artista espírita. É o caso do que poderíamos denominar falta de uma concepção clara sobre o que seja arte. Uma discussão que se vincula diretamente ao debate levantado por Tolstoi que trago para cá .



O pressuposto é simples: fazemos, e incluo-me nisso, música, teatro, poesia, dança. Somos espíritas e queremos colocar o espiritismo naquilo que produzimos. Ao abordar, “direta” ou “indiretamente”, temas espíritas em nossas obras, consideramo-las arte espírita. E eis onde termina nossa reflexão sobre o tema. Não nego o caráter propagador que poemas, espetáculos e canções possam assumir em benefício do espiritismo. O problema começa quando o principal objetivo desses trabalhos é divulgar idéias, princípios e conceitos. Quando o que era pra ser arte nasce do mesmo impulso racional que poderia originar artigos, livros e palestras. Aí podemos sim ter poemas, espetáculos e canções. Só não teremos arte. A esse respeito, dirá Tolstoi:



Tal como a palavra, transmitindo os pensamentos e experiências dos homens, serve para unir as pessoas, a arte serve exatamente da mesma forma. A peculiaridade desse meio de comunhão (...) é que pela palavra um homem transmite seus pensamentos a outro, enquanto que com a arte as pessoas transmitem seus sentimentos umas às outras



Para além da tradicional associação entre arte e beleza, o filósofo russo defende que só há arte quando algum sentimento se soma ao desejo sincero de compartilhar. Na medida em que nasce de sentimentos e a eles conduz, a arte teria um papel determinante nas transformações morais por que passou até hoje a humanidade. A verdadeira obra de arte funcionaria, assim, como meio por excelência de comunhão entre todos os que já passaram por este mundo.



(..) A arte é sim um meio de intercâmbio humano, necessário para a vida e para o movimento em direção ao bem de cada homem e da humanidade, unindo-os em um mesmo sentimento (...) Assim, a capacidade humana de contagiar-se pelos sentimentos de outras pessoas por meio da arte, proporciona ao homem acesso a tudo que a humanidade experimentou antes dele no domínio do sentimento e aos sentimento vivenciados por seus contemporâneos...



Diante disso, a pergunta necessária é: a técnica artística utilizada pelos espíritas tem dado origem a obras de arte? Para fazer música, basta saber jogar com melodia, harmonia e ritmo (a letra é um elemento opcional, mas muito valorizado na música religiosa). Para fazer poesia, métrica, rima e ritmo dão conta do recado. O teatro exige ator, platéia e uma idéia, enquanto a dança demanda corpo e ritmo. Qualquer um pode executar com maestria esses ofícios, desde que resolva se dedicar com afinco ao estudo e à prática deles. É uma simples questão de exercício, prático e intelectual.



Mas há uma enorme distância entre ser músico, poeta, ator ou dançarino e ser artista. Pessoas que dominam essas atividades essencialmente técnicas podem produzir e executar inúmeros trabalhos movidos pelo desejo de vender idéias, ganhar dinheiro ou chocar pessoas, sem que haja um único sentimento sincero por trás dessa iniciativa. Conseguem produzir beleza, mas nem sempre arte. Do mesmo modo, homens e mulheres sem a menor noção teórica podem produzir autênticas obras de arte. Basta darem vazão ao que sentem através de sons, gestos, formas e traços compreensíveis para sensibilizar e até emocionar outras pessoas. Sua arte sincera toca, independente da preocupação estética.



De modo geral, os trabalhos que se propõem a ser arte espírita não pecam por falta de conteúdo. O equívoco parece estar (e aqui, mais uma vez, incluo minha própria produção poética e dramatúrgica) na natureza desse conteúdo. Em lugar de um sentimento sincero, humano e, por isso mesmo, universal que o autor deseje compartilhar, há idéias e crenças particulares que ele quer divulgar. Diante da vontade de fazer um trabalho que propague o espiritismo, escrevemos e compomos obras que desenvolvam conceitos espíritas. É uma peça sobre reencarnação, uma tela sobre mediunidade, um poema sobre pluralidade dos mundos habitados... Mesmo uma música sobre caridade ou uma dança sobre humildade podem carecer de substância artística quando o desejo de pregar uma verdade espírita se sobrepõe à existência de um sentimento genuíno que o autor queira dividir. E não é nada difícil perceber quando é a razão que está no impulso criador de uma obra...



Estaria aí uma condenação ao propalado objetivo de divulgação doutrinária que se atribui à arte espírita? Não exatamente. Se a proposta é fazer arte, deixemos de lado o ímpeto pregador de “verdades espirituais” e assumamos o desejo de compartilhar nossos sentimentos mais autênticos e humanos. Desde que nasçam genuinamente da vivência espírita, tudo o que produzirem será mais arrebatador para divulgar o espiritismo do que o panfletarismo raciocinado. Só assim haverá uma Arte Espírita, contagiante, envolvente, capaz de sensibilizar o ser humano, independente de suas crenças, e de abrir, como pretendia Kardec, um novo capítulo na história da humanidade .



por Romário Fernandes -Espírito de Arte

Belo Horizonte/MG

















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