16 março 2009

Como nascem as coreografias?

por Denize de Lucena[1]


(...)42 o corpo é semeado corruptível, mas ressuscita incorruptível; 43 é semeado desprezível, mas ressuscita glorioso; é semeado na fraqueza, mas ressuscita cheio de força; 44 é semeado corpo animal, mas ressuscita corpo espiritual. Se existe um corpo animal, também existe um corpo espiritual (...) (1 Cor: 42 – 44, 1993)

Muito bem.
A mobilização para criação de um grupo de dança na casa espírita, deu certo e já há um bom número de participantes interessados. Há um espaço grande e arejado, autorizado pelos dirigentes que também permitiram o uso do equipamento de som. Foram definidos dia e horário dos encontros e até foi sugerida uma primeira apresentação (se tudo der certo) na abertura da Semana Espírita da Instituição. Agora, é só pôr mãos à obra...
E aí vem a pergunta crucial: Por onde começar?
O trabalho com a dança exige tempo, responsabilidade e comprometimento, como qualquer outro trabalho, aliás, que se pretende sério e duradouro. Ao escolhermos a linguagem da dança como atividade artística, optamos também pelo seu instrumental: o corpo. Nosso corpo é formado de ossos, músculos, articulações e líquidos. Ele é relativamente maleável mas necessita de tempo para conseguir responder às exigências de um trabalho mais técnico e virtuoso.
Existe um bom número de técnicas corporais que podem ser utilizadas para o momento anterior à composição coreográfica. Eugênio Barba[2], teórico do teatro, define este instante de preparação corporal como pré-expressividade. É a parte que permanece durante os ensaio e antes das apresentações, que visa preparar o corpo dos atores-bailarinos para uma melhor execução dos movimentos e desempenho de seus papéis. Os profissionais de educação física e atletas, chamam este instante de aquecimento que, segundo BATISTA (2003):
(...)é a primeira parte da atividade física e tem como objetivo preparar o indivíduo tanto fisiologicamente como psicologicamente para a atividade física. A realização do aquecimento visa obter o estado ideal psíquico e físico, prevenir lesões e criar alterações no organismo para suportar um treinamento, uma competição ou um lazer, onde o mais importante é o aumento da temperatura corporal.
O aquecimento deve ser proporcional ao grau de exigência que será solicitado ao corpo, a depender do tipo de atividade física que se pretende fazer.
Cumprida esta etapa, o grupo está pronto para dançar. Mais uma vez, podemos recorrer a grande variedade de caminhos. É importante que se conheça alguns e que se decida pelo que melhor se ajusta ao grupo e aos objetivos do trabalho.
Improvisação coreográfica - Apesar de ser possível dançar no silêncio, geralmente acompanhamos uma melodia, um som que seja. Assim, preparar nosso corpo, física e mentalmente, para executar bem os movimentos, é atividade imprescindível nos encontros do grupo.
Há muitas propostas de improvisação. Improvisar, significa executar algo sem prévia preparação. Em dança, improvisar é coreografar e executar a coreografia simultaneamente. É um excelente exercício de avaliação e auto-avaliação, pois ao improvisar, acionamos em nossa memória cerebral e corporal, movimentos, gestos e desenhos corporais que estão registrados em nós, muitas vezes inconscientemente, e preparamos nossa mente e nosso corpo para responder aos estímulos musicais.
§ Iniciar, um momento de escuta da música. De olhos fechados, deixe a imaginação livre para visualizar imagens, cores, movimentos que lhe auxiliarão na execução da improvisação. Observe os sentimentos que a música desperta, seu ritmo, timbres melódicos e tudo o mais que lhe chamar a atenção.
§ Coloque novamente a música e deixe seu corpo lhe guiar. Permita-se!
Composição coreográfica e ensaios – Embora improvisar seja importante e nos traga grande satisfação, geralmente dançamos peças coreografadas, ou seja, executamos movimento pré-determinados e ensaiados para serem precisos.
Podemos começar a coreografar de várias maneiras. Uma das possibilidades é partirmos de uma palavra. Sim, uma simples palavra como despertar... este será nosso mote, nosso tema; buscaremos então uma música que se harmonize com esta idéia, buscaremos sinônimos e imagens que gostaríamos de passar com esta idéia.
Por exemplo, podemos estudar na passagem da Estrada de Damasco, o despertar de Paulo de Tarso (EMMANUEL, 1994, pp. 196 – 200), e o capítulo xvii de O Evangelho Segundo o Espiritismo, Sede Perfeitos (KARDEC, 2003, pp. 271 –285). Queremos falar do despertar para as verdades do espírito, então trazemos sentimentos como alegria, reconhecimento, gratidão, etc. Podemos pedir ao grupo que pesquise tudo o que tiver alguma relação com o tema, por exemplo, poemas, textos, imagens, cores, enfim, tudo que possa alimentar a nossa criatividade.Escolhemos uma música instrumental, que nos dará maiores possibilidades de criação. Peguemos por exemplo, a música Marc e Bella de Moacyr Camargo[3] (Instrumental).
Quando coreografamos uma música instrumental não temos palavras que nos guiem mas os elementos presentes na música nos trazem muitas informações que não podemos ignorar: há um ritmo, um naipe de instrumentos com suas timbragens específicas, há momentos que se repetem e outros que variam; ouvir, ouvir e ouvir a música muitas e muitas vezes é o primeiro exercício a ser feito. Perceber sua pulsação, que imagens ela sugere, quais os sentimentos que desperta...
É importante que todo o grupo participe deste instante, pois assim a coreografia terá a riqueza da percepção de todos; cada um de nós capta as vibrações ao nosso redor de acordo com o nosso grau de adiantamento espiritual e o resultados das experiências vividas. Somos corpo físico, perispírito e espírito, que governa nossas ações. Somos luz, somos energia, emanamos energias, trocamos energias.
“Para definirmos, de alguma sorte, o corpo espiritual, é preciso considerar, antes de tudo, que ele não é reflexo do corpo físico, porque, na realidade, é o corpo físico que o reflete, tanto quanto ele próprio, o corpo espiritual, retrata em si o corpo mental que lhe preside a formação.” (ANDRÉ LUIZ, 1987, p. 25)

Cada um de nós terá sentimentos, percepções e imagens diferentes ao ouvir uma mesma música... e é bom lembrar que o nosso público também.
E, se escolhermos trabalhar com uma música que tenha letra?... todo o processo de estudo e coreografia descrito anteriormente pode ser mantido; a grande diferença é que palavras são imagens, nosso cérebro tem armazenado imagens ligadas às palavras que ouvimos e aprendemos ao longo de nossas vidas, ele funciona por associação, logo, ao ouvirmos uma palavra, ele nos traz imagens, pessoas, acontecimentos, sentimentos, situações e tudo o mais que tenha associado àquela palavra.
Algumas palavras são do inconsciente coletivo e estão impressas em quase todo mundo de maneira mais ou menos parecida, mas ainda assim, há grande possibilidade de variações. Então, quando escolhemos uma música cantada para coreografar, criamos uma dificuldade maior, pois o público já não estará apenas sentindo e percebendo, mas acionará um pensar, devido às palavras. E se for uma música conhecida... aí arranjamos um problemão.
Bem, nada impede contudo, que coreografemos uma música com letra. Vamos usar a mesma canção de Moacyr Camargo[4].

Voar num sonho azul, voar, voar
Nos raios da lua azul, voarmos
Estrelas brilham em nós, brilhamos
Em suas mãos flores brilhantes
Nossos corpos reluzem
E em tanta luz, nos olhamos.
Nos conhecemos longe
Campos, beijos e flores
Onde corremos livres e belos
O belo azul em nós.
//:Crianças, anjos, vozes celestes
Cantam os sons soltos no universo
Brincam no azul lindos risos
Vale amar da Terra ao infinito azul:\\
A entrada do coro de crianças, nos trás alegria, possibilitando movimentos que lembrem jogos e brincadeiras infantis. Nos trás um sentimento de liberdade que nos dá vontade de voar... voar no infinito, no infinito azul... Moacyr nos fala de estrelas, flores, luzes, risos e anjos. Nos alimenta a alegria de fazermos parte da Criação Divina e a possibilidade real da evolução. Salienta o amor como alavanca desta evolução e a presença divina ao nosso redor.
Do ponto de vista coreográfico, podemos dizer que a letra do Moacyr nos remete à movimentos amplos, contínuos, com vigor e alegria, provavelmente haverá desenhos circulares ocupando espaço e adereços leves como lenços, fitas ou grandes leques poderão riscar desenhos no espaço, ampliando o corpo dos bailarinos. Saltos, carregas[5], movimentos que usem o nível alto, com intenção para cima e para longe, também são pedidos pela letra e melodia desta música. Pode ser um pas de deux[6], ou uma coreografia para corpo de baile... dificilmente será um solo, pois a música cresce ao longo de sua execução, parece preencher cada vez mais os espaços, sua vibração é contagiante.
Este é um exemplo de como coreografar coletivamente, mesmo não possuindo muitos conhecimentos técnicos. Se houver alguém que tenha algum conhecimento de dança e que deseje conduzir a criação coreográfica poderá utilizar alguns recursos simples como:
Células coreográficas – cria-se uma seqüência pequena de movimentos que será a célula coreográfica. Como na biologia, esta dará origem a várias outras. Na prática, essa seqüência criada é repetida com variações que podem ser de direção, de ritmo, de nível, de velocidade, de amplitude. Essas variações permitirão desenhos diferentes e criativos, que darão à coreografia o colorido necessário.
Seguindo a contagem – esta é uma técnica que exigirá algum conhecimento de iniciação musical. Primeiro faz-se uma decomposição da música, parte à parte, dividindo-a na sua estrutura de composição (pulsação, ritmo, compasso, estrofes, refrões, tema, etc.). A seguir, monta-se a coreografia sobre esta divisão, seguindo seu desenho sonoro. Normalmente se monta as seqüências de oito em oito tempos, mas isto dependerá da música escolhida. A contagem é muito útil também no instante de transmitir os passos aos bailarinos, auxiliando a manter o sincronismo.
Em qualquer método de criação coreográfica, busque explorar os elementos básicos da dança:
§ níveis (alto, médio e baixo)
§ direção (laterais, trás, frente, diagonais)
§ ritmo (pulsação, compasso, variação, contratempo, pontuação)
§ movimento (contínuo, quebrado, brusco, vigoroso, suave)
§ gestos (estilização, ampliação, variação)
§ percursos (desenhos feitos pela trajetória do movimento ou do corpo do bailarino)
Um outro momento muito importante é o pós-criação. Depois de pronta a coreografia, faz-se necessário fazer o que chamamos de limpeza dos movimentos, para corrigir os detalhes e fazer com que todos executem o mesmo movimento, no mesmo tempo, da mesma maneira e pelo mesmo percurso. Esse é um instante um pouco cansativo, mas imprescindível para garantir a plasticidade e sincronismo necessários.
E aí vai um conselho: é preferível que todos os bailarinos levantem as pernas a 45º com as pontas dos pés esticados, que cada um levantar em uma altura diferente, sem definição do movimento. Dedique o tempo que for necessário para este trabalho.
Mesmo quando o corpo de baile não estiver executando simultaneamente o mesmo movimento, ter os passos bem definidos, de onde partem, onde terminam, por onde passam, com precisão dentro da contagem da música, tornará mais bela a coreografia.
Outra dica: brincar com subgrupos dentro da coreografia, agrega valor e beleza à mesma. Em uma coreografia com quatro bailarinos, por exemplo, ora está um sozinho e os três juntos executam outra seqüência; daí a pouco subdividem-se em duplas; mais um pouco, a música cresce e estão todos juntos, sincronizados nos mesmos movimentos, e finalizam executando movimentos individuais.
Uma coreografia onde todos fazem o mesmo movimento o tempo todo, torna-se visualmente cansativa. Uma simples mudança de direção pode dar o toque especial: um executa a seqüência de frente enquanto dois fazem a mesma seqüência em diagonal para o público, e o último executa os movimentos ora para frente, ora de costas para a platéia. Em determinado momento, estão novamente todos juntos, sincronizados.
Uma variação de tempo, também pode dar esse toque diferente na coreografia. Dois começam a seqüência, os outros dois só iniciam oito tempos depois dos primeiros. De repente, um dos primeiros, pára, e espera os outros dois para seguir com estes. E assim por diante.
Explore ritmo, direção e movimento fazendo a coreografia ficar bela e interessante. Não tenha limites, solte a criatividade!
Já temos uma coreografia (ou mais de uma). Agora podemos pensar na apresentação que é, talvez, a melhor parte de todo este processo. Vou deixar isto com vocês, afinal sei que podem dar conta.
É um trabalho árduo este de dançar, não é? Mas é também muito prazeroso e engrandecedor. E quando se está entre amigos, fazendo o que se gosta, não há peso nem obrigação. Então, é só seguir e esperar o dia de dividir todo este trabalho com uma platéia que, esperamos, possa captar tudo o que aprendemos e somar ao nosso trabalho, em uma troca fraternal de energias.
E, por favor, não esqueça de me convidar para a estréia. Adorarei estar lá para aplaudir.

Denize de Lucena
(Salvador, Ba)
denizedelucena@terra.com.br

Bibliografia:

§ andré luiz (espírito); xavier, Francisco Cândido; VIEIRA, Waldo. Evolução em Dois Mundos. 10a. ed. Brasília, DF: FEB, 1987.
§ Novo Testamento – Primeira Epístola de Paulo Apóstolo aos Coríntios. in BÍBLIA SAGRADA. Ed. Pastoral – Bolso. 1a. ed. São Paulo - SP: Paulus, 1993.
§ BATISTA, Djalma. A importância do aquecimento na atividade física. Revista virtual EFArtigos. Natal/RN. Vol. 01, no. 06 jul. 2003. Disponível em :http://efartigos.atspace.org/otemas/artigo8.html acesso em : 12 jul. 2008.
§ KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o espiritismo. RIBEIRO, Guillon. (trad.) 121 ed. Rio de Janeiro – RJ: FEB, 2003.

[1] Com formação técnica em Artes Visuais pelo CESV e em Dança pela FUNCEB, Licenciada em Artes Cênicas pela UFBa, Pós-Graduada em Supervisão Escolar pela Cândido Mendes –RJ, espírita desde 1995, integrante da Comunidade Arte e Paz – Ba.

[2] Diretor teatral, fundador e teórico da Antropologia Teatral, fundador e diretor do Odin Teatret, na Noruega. Suas idéias estão registradas nos seus livros Terra de cinzas e diamantes. SP: Perspectiva, 2006; Além das Ilhas Flutuantes. SP: Hucitec,1991; A Arte Secreta do Ator. SP:Hucitec,1995 edição com Nicola Savarese e A Canoa de Papel. SP: Hucitec,1994.

[3] Música Marc e Bella de Moacyr Camargo, do CD Marc e Bella num Sonho Azul. (moacyrcamargo@uol.com.br)

[4] No CD Marc e Bella há as duas versões, em instrumental e cantada.
[5] termo usado quando os bailarinos são suspensos por outros.
[6] Do francês, passo de dois: termo usado no ballet clássico para designar coreografia executada por um casal de bailarinos. Peça obrigatória no ballet de repertório.